Ainda estava por nascer o cara que iria flagrá-lo trocando o certo pelo duvidoso. Melhor dizendo, “tocando” o duvidoso no lugar do certo.
O Concerto número 2 para piano e orquestra de Rachmaninov e o número 1, em mi menor, de Chopin, o Atanagildo assobiava, nota por nota, do início ao fim. Os três movimentos de cada um deles, tão familiares quanto a unha encravada que tinha desde menino. Achava de melhor proveito e de maior prazer ouvir “Starman” pela 593ª vez do que arriscar um rolê no Spotify para conferir o que andava bombando em ouvidos ianques semana passada.
A duração da vida era inversamente proporcional à oferta de músicas para embalá-la, pensava o Atanagildo. Não se conformava com a montanha de tempo, gasto e não reaproveitável, na audição de porcaria. Abrindo zilhões de ostras estragadas em busca de uma improvável pérola.
Para chegar aos seus exigentes ouvidos, era preciso perfurar um grosso escudo anti-mau gosto. Sim, esse meu amigo era um verdadeiro mata-burro sonoro. Se algo novo e bom surgisse, qualquer coisa diferente que realmente valesse a atenção investida, mais cedo ou mais tarde ele tomaria conhecimento de alguma forma. Assim, não se preocupava e seguia fiel a seus clássicos. Deixando que o tempo fizesse, lentamente, sua seleção natural.
Foi assim que teve o prazer de nunca ouvir Pablo Vitar. Que negou-se a dar uma chance a um obscuro quarteto de Rostropovitch para cair nos braços sempre abertos da Pastoral de Beethoven. Que encomendou uma dúzia de missas em ação de graças, por ter escapado ileso de uma bomba sertaneja que passou de raspão nele, ao descer de um trem de metrô na Estação da Luz.
Esta é uma obra de ficção
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