Sexta-feira, Outubro 25, 2024

A Hora Desconcertante

Mais Falados

Guia Comercial

Marcelo Pirajá Sguassábia
Marcelo Pirajá Sguassábia
Redator publicitário há mais de 30 anos. Prêmios Colunistas, Profissionais do Ano, Prêmio Abril de Publicidade, Top Rac, MidiaFestival, Central de Outdoor, Festvídeo, Show-up Meio&Mensagem e outros.

A providência mais adiada foi também a mais dolorosa. E quem duvidaria que seria assim?

Começando pela penteadeira. Um bob de cabelo e um frasco vencido de laquê em uma das gavetas. Na outra, uma caixa vazia e meio deteriorada de sabonetes belgas. Mamãe não gostava de se desfazer de nada. Ela guardava coisas com o mesmo amor com que recebia pessoas em casa.

Ao vasculhar o amplo ventre da cômoda durante a limpeza, encontramos um folheto de missa, um dedal enegrecido e até uma pequena concha, de uma praia desconhecida.

A mesinha de centro, que por tanto tempo sustentou os netos entre seus primeiros passos, foi retirada pelos ombros de dois rapazes de macacão. Eles mal sabiam do peso das risadas e das lágrimas que aquele móvel tão leve já havia suportado.

O oratório, ao lado de uma estátua de santo, continha uma latinha de pastilhas Valda repleta de dentes de leite e cordões umbilicais. O irmão mais velho nasceu ali, nas mãos da parteira, quando a casa ainda exalava o cheiro do sinteco e da tinta fresca.

Levaram a mesa de jantar, junto com o aroma da feijoada quente, o perfume de cebola do bife e as migalhas de pão que meu pai juntava para alimentar o papagaio.

A cama, testemunha de toda uma vida e do último suspiro de ambos. Primeiro a de papai, treze anos antes da de mamãe.

A cada objeto retirado, um espaço branco na parede revelava a silhueta do móvel que esteve ali desde tempos imemoriais. As paredes, em mais alguns anos, conhecerão a fúria das marretas, transformando cenários de alegria, nascimento, dilemas e morte em um estacionamento para clínicas ou supermercados.

Por último, o guarda-roupa do quarto deles, com o cheiro de naftalina. Era um depósito de enxovais, primeiro os deles e depois os nossos. Lençóis de nascimento, vestidos de primeira comunhão e até o tailleur e o terno das Bodas de Prata, pendurados desde 1975 até ontem.

Sem mais delongas, ouvi um toc-toc vindo de dentro do guarda-roupa. Abri a porta.

“Surpresa!”, gritaram papai e mamãe em uníssono, como se fossem crianças brincando de esconde-esconde, com as pernas encolhidas para caberem lá dentro. Papai e mamãe, apertados ali, disfarçando aquele riso de quem sabia que estavam fazendo uma travessura… esses dois sapecas.

Esta é uma obra de ficção © Direitos Reservados Crônica de Marcelo Sguassábia.

- Advertisement -

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

- Advertisement -

Últimas Notícias

Enfermeiros são detidos por furto de medicamentos na Santa Casa de Vargem Grande do Sul

Nesta terça-feira, 22 de outubro, a Polícia Civil prendeu dois enfermeiros em flagrante por desviar medicamentos da Santa Casa...
- Advertisement -

Artigos Relacionados

- Advertisement -